Um novo paradigma e muitos desafios

POR ANA CLÁUDIA M. DE FIGUEIREDO

Advogada e ex-assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do Trabalho. Graduada em Letras e Direito e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Vice-Presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e Conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Conade.

Um outro ponto que mantém esses dependentes ao desabrigo da proteção da lei é a previsão, no art. 217, IV, “d”, da Lei nº 8.112/1990, de que é beneficiário da pensão o filho que “tenha deficiência intelectual ou mental, nos termos do regulamento”. A exigência de regulamentação – ainda não atendida pelo Poder Executivo – retira dessas pessoas o direito à dependência presumida²³ e das respectivas famílias a certeza quanto à concessão da pensão aos/às seus filhos/as quando vierem a faltar. Além disso, não há na Lei nº 8.112/1990 previsão similar à constante do § 6º do artigo 77 da Lei nº 8.213/1991 (“O exercício de atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual, não impede a concessão ou manutenção da parte individual da pensão do dependente com deficiência intelectual ou mental ou com deficiência grave”), que garante aos dependentes do RGPS, mesmo auferindo renda, a manutenção do direito à pensão.


Ante esse contexto de insegurança jurídica detectado, no particular, no regime da Lei nº 8.112/1990, muitos familiares têm buscado manter os decretos de interdição das pessoas com deficiência intelectual ou mental com quem têm vínculos ou ainda requerer a curatela – mesmo em circunstâncias em que essas pessoas conseguem exprimir sua vontade –, visando essencialmente garantir para os seus dependentes²⁴ o direito ao benefício previdenciário (pensão).

No que tange ao Regime Geral de Previdência Social – RGPS²⁵, a referida desproteção não ocorre porque estabelecido na Lei nº 8.213/91 que o direito à percepção da cota individual da pensão cessará “para o filho, a pessoa a ele equiparada ou o irmão, de ambos os sexos, ao completar vinte e um anos de idade, salvo se for inválido ou tiver deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave” (§ 2º e inciso II do artigo 77), sem alusão a interdição, curatela ou regulamento.


Ademais, a Lei nº 8.213/91, ao indicar quem são os “dependentes” dos segurados, no Regime Geral, arrolou, além das pessoas “inválidas”, as pessoas com deficiência intelectual, mental ou com deficiência grave, independentemente de declaração judicial (Figueiredo e Gonzaga, 2018, p. 91), prevendo ainda, como dito, a compatibilidade entre trabalho remunerado e recebimento de pensão nesse regime (§ 6º do artigo 77).


Também respalda o entendimento de que inexiste insegurança quanto à pensão no âmbito do RGPS, a expressa previsão, no artigo 110-A da Lei 8.213/91²⁶, incluído pela Lei nº 13.146/2015 (LBI), de inexigibilidade, no ato de requerimento de benefícios operacionalizados pelo INSS, de termo de curatela de beneficiário com deficiência²⁷.


Além do direito previdenciário à pensão por morte, essa regra legal garante também, independentemente de curatela, o direito das pessoas com deficiência aos benefícios assistenciais, a exemplo do benefício de prestação continuada, previsto no artigo 20 da Lei nº 8.742/1993 – Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).
Acerca dos aspectos ora referidos, Gugel compreende, baseada no artigo 85 da LBI e sem se referir ao tipo de regime, ser inexigível a curatela para o acesso a qualquer direito, “como por exemplo, o previdenciário relacionado à pensão por morte ou o direito assistencial ao benefício da prestação continuada” (2017, p. 5).


O que importa ser enfatizado nessa quadra é a imprescindibilidade da absoluta conformação, com a maior brevidade possível, das citadas regras da Lei nº 8.112/1990 – e de outras tantas normas infraconstitucionais – às normas constitucionais estatuídas na Convenção. Essa, a propósito, impõe aos Estados Partes a obrigação de adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias à realização dos direitos reconhecidos
em seu texto. Consta, ainda, do decreto de promulgação (Decreto nº 6.949/2009) que a CDPD e seu Protocolo Facultativo “serão executados e cumpridos tão inteiramente como neles se contém”.


As alterações legislativas, realizadas pela LBI em homenagem à CDPD, impõem reformulações significativas
no campo da doutrina e da jurisprudência, a fim de que – removidas as barreiras impeditivas da participação plena e efetiva das pessoas com deficiência na sociedade e corrigidas as profundas desvantagens sociais por essas enfrentadas – seja atendido o propósito da Convenção, de promover, proteger e assegurar o exercício ilimitado e equitativo
de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas essas pessoas, incluído entre esses direitos o de reconhecimento da sua plena capacidade civil, ainda que necessário, para o exercício dessa, o apoio de pessoas da sua confiança, como o viabilizado mediante o instituto da tomada de decisão apoiada.

A consagração, na redação da Convenção, do sistema de apoio na tomada de decisões – em homenagem ao modelo social de deficiência e em direção à superação do sistema de substituição na tomada de decisões – significou a repercussão mais substancial, inovadora e desafiadora no âmbito dos direitos das pessoas com deficiência, tanto em razão das profundas modificações que encerra em si mesma, especialmente em relação ao exercício da capacidade
civil por pessoas com deficiência intelectual e mental, quanto em face do impacto que desencadeia em relação a outros direitos. 

Implementar, nesse contexto, o novo paradigma da capacidade jurídica das pessoas com deficiência, o qual consagra o lema “nada sobre nós sem nós”, demandará superação de preconceitos e desafios e imporá esforço significativo de toda a sociedade em prol da pavimentação de caminhos em busca dessa expressão máxima da dignidade humana.

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23 Bonfim (2018), p. 182.

24 Efetivamente dependentes por não deterem, em regra, condições de garantir o próprio sustento.

25 A que se vinculam, entre outros, os empregados não sujeitos a regime próprio de previdência social.

26 Conquanto ainda pendente de regulamentação.

27 No mesmo sentido, Bonfim (2018, p. 183).

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