Um novo paradigma e muitos desafios

POR ANA CLÁUDIA M. DE FIGUEIREDO

Advogada e ex-assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do Trabalho. Graduada em Letras e Direito e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Vice-Presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e Conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Conade.

A par de estabelecer como regra a capacidade plena das pessoas com deficiência, dissociando a deficiência da incapacidade civil, a LBI, também denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência, modificou os artigos 3º e 4º do Código Civil de 2002, afastando a possibilidade de se considerar como relativa ou absolutamente incapazes – de modo a autorizar
a curatela –“… os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido”, “os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo” e “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”.
O Estatuto também deslocou a hipótese de impossibilidade de expressão da vontade, do rol da incapacidade absoluta para o da incapacidade relativa, remanescendo no sistema brasileiro uma única hipótese de incapacidade absoluta, a incidente aos menores de 16 anos.

Essas mudanças limitaram as possibilidades de curatela, inclusive das pessoas com deficiência, às hipóteses previstas no art. 1.767 do Código Civil, em que não há mais referência a desenvolvimento mental ou discernimento.
As reformulações amplas das estruturas teóricas elaboradas ao longo de séculos em torno da capacidade jurídica das pessoas com deficiência denotam reverência do legislador nacional ao direito internacional dos direitos humanos, sendo factíveis por ser a capacidade civil uma construção social, que reflete as eleições que as sociedades fazem em determinado momento histórico (Palacios, 2008, p. 431).

Em face da profunda mudança filosófica que impõe e das repercussões que implica, especialmente em relação a pessoas que nunca tiveram sua autonomia respeitada como sujeitos morais (Palacios, 2008, p. 219), o reconhecimento da capacidade civil das pessoas com deficiência intelectual e mental constitui um enorme desafio para toda a sociedade,
apenas suscetível de ser suplantado mediante o enfrentamento do tema sob o enfoque do direito internacional dos direitos humanos.

A fim de viabilizar o exercício da capacidade civil por parte de pessoas com deficiência que eventualmente necessitam de apoio para a prática de atos da vida civil, a LBI introduziu, no Código Civil, o artigo 1.783-A9, o qual dispõe sobre a tomada de decisão apoiada, que se insere em modelo diverso10 do único anteriormente previsto na lei, de decisão substitutiva,
em que se admite que um terceiro tome decisões pela pessoa com deficiência. É uma medida que inequivocamente
privilegia os já referidos princípios da autonomia, da participação plena e da inclusão das
pessoas com deficiência na sociedade.


A tomada de decisão apoiada, facultada pelo art. 84, § 2º, da LBI, é, nos termos do caput do artigo 1783-A do Código Civil, “o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-
lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade”, relativamente, por exemplo, ao regime de casamento, à venda de um imóvel, a transações financeiras acima de determinado valor etc.
Os parágrafos do artigo 1783-A do Código Civil detalham, em alguma medida, o instituto.


Do pedido de tomada de decisão apoiada, formulado pela pessoa com deficiência, por meio de advogado ou defensor público, constarão os nomes das pessoas eleitas para prestar-lhe apoio, os limites do apoio, os compromissos dos apoiadores, o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa a ser apoiada.
O juiz, assistido por equipe multidisciplinar, decidirá sobre o requerimento após ouvir o Ministério Público, a pessoa com deficiência e os apoiadores escolhidos.


Embora a lei não exija a contra-assinatura dos apoiadores no negócio a ser firmado, entendemos ser importante, a depender das necessidades da pessoa, o registro, no termo de decisão apoiada, da imprescindibilidade de tal contra-assinatura relativamente a alguns atos potencialmente mais gravosos, para demonstração do apoio adequado – livre de influência indevida e de conflitos de interesses –, traduzido pelo “fornecimento de elementos e informações
necessários” à celebração do negócio. Importa garantir, no processo de construção da autonomia e independência dessas pessoas que necessitam de um suporte mais amplo, apoios úteis à consolidação desse processo e salvaguardas proporcionais e efetivas para prevenir abusos, visando, em última análise, propiciar o desenvolvimento de habilidades que
contribuirão para sua inclusão plena na sociedade. Em caso de divergência entre o apoiado e um dos apoiadores, relativamente a negócio que envolva potencial risco ou prejuízo relevante, o juiz, ouvido o Ministério Público, decidirá a questão. Do teor desse preceito depreende-se que, referindo-se a divergência a negócio de menor valor, o dissenso não
será resolvido pelo Judiciário, devendo prevalecer, em homenagem ao princípio da autonomia, a vontade do apoiado.


Será válido e produzirá efeitos sobre terceiros, sem restrições, o negócio jurídico celebrado por pessoa apoiada, desde que abrangido no apoio acordado. De outro lado, como inexiste restrição à capacidade civil da pessoa submetida, relativamente a certos atos, à tomada de decisão apoiada, serão igualmente válidos os negócios firmados sem apoio,
em relação a questão não incluída no acordo¹¹. Na hipótese de algum dos apoiadores agir com negligência, exercer pressão indevida ou deixar de cumprir as obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada, ou qualquer pessoa, denunciar o fato ao Ministério Público ou ao juiz, que, concluindo pela procedência da denúncia, destituirá o apoiador e nomeará, após ouvida a pessoa apoiada e se for do seu interesse, outro apoiador.

Continua…

⁸ A referida alteração tem sido objeto de acirradas críticas, a exemplo da externada por Stolze (2016, p. 5-6), que entende ter o Estatuto cometido.

⁹ O artigo 1.783-A do Código Civil foi acrescido pelo artigo 116 da LBI.

¹º O modelo de apoio na tomada de decisões foi o que acabou sendo plasmado no artigo 12 da CDPD e incorporado ao Código Civil brasileiro mediante a inclusão, entre outros, do art. 1783-A.

¹¹ Dependente a validade do ato, ainda, por certo, da presença dos requisitos gerais de validade do ato jurídico (art. 104 do CC).

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