Um novo paradigma e muitos desafios

POR ANA CLÁUDIA M. DE FIGUEIREDO

Advogada e ex-assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do Trabalho. Graduada em Letras e Direito e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Vice-Presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e Conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Conade.

Acerca das pessoas submetidas à interdição anteriormente à entrada em vigor da LBI, o entendimento
de Stolze (2016) – com o qual concordamos – é o de que “os termos de curatela já lavrados e expedidos continuam válidos, embora a sua eficácia esteja limitada aos termos do Estatuto, ou seja, deverão ser interpretados em nova perspectiva, para justificar a legitimidade e autorizar o curador apenas quanto à prática de atos patrimoniais”.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência procedeu, ainda, a alterações relevantes em dispositivos do Código Civil que dispunham sobre a curatela, cabendo citar a possibilidade de promoção do processo que define os termos da curatela pela própria pessoa (art. 1.768, inciso IV); a possibilidade de curatela compartilhada (art. 1.775-A); a participação obrigatória de equipe multidisciplinar no processo (art. 1.771); a consideração, na escolha do curador pelo juiz, da vontade e das preferências da pessoa a ser submetida à curatela, da ausência de conflito de interesses e de influência indevida, da proporcionalidade e da adequação da medida protetiva às circunstâncias da pessoa (art. 1.772, parágrafo único) e, ainda, o apoio necessário às pessoas referidas no inciso I do art. 1.767 (aquelas que, por causa transitória ou permanente,
não puderem exprimir sua vontade) à preservação do direito à convivência familiar e comunitária (art. 1.777), em nítido prestígio ao artigo 19 da CDPD, que assegura o direito à plena inclusão e participação na comunidade.
Conforme defendido por boa parte da doutrina, à exceção dos artigos 1.767, 1.775-A e 1.777 do Código Civil, os demais citados – além de outros não referidos aqui – foram revogados pela Lei nº 13.105/2015 (Código de Processo Civil), em face da superveniente entrada em vigor desse último diploma.

Tendo sido concomitante a tramitação da LBI – mediante a qual promovidas as modificações do Código Civil – e do CPC, a mencionada revogação revela ausência de diálogo entre os legisladores. Como resultado dessa falta de diálogo, vários avanços determinados pela LBI, em homenagem à CDPD, acabaram subsistindo por pouquíssimo tempo.
Ressaltamos que, mesmo para aqueles que entendem não terem sido revogados os artigos 1.768, 1.769, 1.771 e 1.772 do Código Civil (Soares, p. 32-36), é impositivo o alinhamento do Código Civil e do Código de Processo Civil com a Convenção – além da compatibilização desses diplomas legais entre si –, o que já teve início com a aprovação do Substitutivo
ao Projeto de Lei do Senado nº 757/2015¹⁸ na CCJ. Nos artigos 747 a 758 (Seção IX – da Interdição) e 759 a 763 do CPC (Seção X – Disposições Comuns à Tutela e à Curatela) – que escapam ao objetivo deste trabalho – encontram-se as regras processuais que regem a curatela.

Ainda quanto a essa medida, importa registrar que, além de recomendar a retirada de todas as disposições legais que perpetuam o sistema de tomada de decisão substitutiva, o Comitê de monitoramento da CDPD também recomendou ao Brasil que, “em consulta com as organizações de pessoas com deficiência e outros prestadores de serviços, o Estado
Parte adote medidas concretas para substituir o sistema de tomada de decisão substitutiva por um modelo de tomada de decisão apoiada, que defenda a autonomia, vontade e preferências das pessoas com deficiência em plena conformidade com o artigo 12 da Convenção”¹⁹.

Aspecto digno de nota é o concernente às alegações de que o reconhecimento da capacidade plena das pessoas com deficiência implicou desamparo.

É certo que vários dispositivos legais, porque ainda não adequados ao conteúdo da Convenção, têm desencadeado a apontada desproteção. A referida dissintonia, entretanto, em vez de afastar o direito das pessoas com deficiência ao reconhecimento da sua capacidade legal, deve impulsionar os poderes públicos a procederem à harmonização demandada e, enquanto não realizada tal harmonização, desafiar os operadores do direito a empreenderem “um esforço interpretativo muito maior para concretizar desígnios que seriam próprios da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas status constitucional ao ordenamento jurídico brasileiro” (Azevedo, p. 2).

Um exemplo de desamparo decorrente da dissonância das normas legais em relação à Convenção, e especialmente em relação ao artigo 12 desse tratado internacional, pode ser verificado em relação à pensão regida pela Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Isso porque o artigo 222, III, dessa Lei afirma que a perda da qualidade de beneficiário, em se tratando de dependente com deficiência intelectual ou mental (art. 217, IV, “d”) “que o torne absoluta ou relativamente incapaz”, ocorre com o levantamento da interdição. Se considerada apenas a literalidade desses dispositivos legais²º – à margem de uma interpretação sistemática de todo o ordenamento –, o/a filho/a do/a servidor/a com deficiência intelectual ou mental somente assegurará a condição de beneficiário/a se submetido/a à curatela²¹, o que é totalmente incompatível com os princípios e preceitos da CDPD e da LBI. Segundo Bonfim, a aplicação por analogia do art. 110-A da Lei nº 8.213/1991²² ao
dependente com deficiência intelectual ou mental do servidor público regido pela Lei nº 8.112/1990 torna inaceitável que, “para este último, seja-lhe imposta, como pré-condição para acesso ao benefício da pensão, a interdição judicial” (2018, p. 183).

Continua…

18 Sobre esse Projeto de Lei cf. o artigo “Reconhecimento da capacidade civil de pessoas com deficiência intelectual e mental”.

19 Observações conclusivas sobre o relatório inicial do Estado Brasileiro, p. 4, tradução livre.

20 Concernentes ao Regime Próprio de Previdência Social dos servidores regidos pela Lei nº 8.112/1990.

21 A fim de corrigir desproteção dessa ordem, o Substitutivo ao PLS 757/2015, aprovado na CCJ, assegura às pessoas com deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave, quando submetidas à tomada de decisão apoiada, a mesma proteção legal garantida às pessoas relativamente incapazes – naquilo que, por certo, não esvazie esse instituto -, ante igual presunção de vulnerabilidade.

22 Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social (do Regime Geral de Previdência Social – RGPS).

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