Um novo paradigma e muitos desafios

POR ANA CLÁUDIA M. DE FIGUEIREDO

Advogada e ex-assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do Trabalho. Graduada em Letras e Direito e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Vice-Presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e Conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Conade.

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD e seu Protocolo Facultativo foram aprovados, com valor de norma constitucional¹, mediante o Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, e promulgados por meio do Decreto Presidencial nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.


A Convenção é inovadora em diversos aspectos, mas especialmente revolucionária no seu artigo 12 – que trata do reconhecimento igual perante a lei -, o qual impôs relevante mudança de paradigma em relação à capacidade civil das pessoas com deficiência², desencadeando repercussões importantes nas mais variadas áreas³.

Além de assentar a reafirmação do direito das pessoas com deficiência de serem reconhecidas como pessoas perante a lei – que equivale ao reconhecimento da sua personalidade jurídica, hábil a lhes outorgar aptidão para a titularidade de direitos e de obrigações – (item 1), a Convenção estabelece o reconhecimento, pelos Estados Partes, de que “as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”, determinando a adoção de medidas apropriadas para prover-lhes o acesso ao apoio de que necessitarem no exercício de sua capacidade legal (itens 2 e 3). O item 2 assegura que a pessoa com deficiência somente sofrerá limitação em sua capacidade, assim como as demais pessoas, a partir de critério incidente a todos os indivíduos, não podendo mais a deficiência ser adotada como critério determinante da incapacidade. A capacidade de que trata o artigo 12 da CDPD é, portanto, plena, abrangendo tanto a capacidade de direito (ou de gozo) como a capacidade de fato (ou de exercício), que não se confunde, no entender do Comitê da Organização das Nações Unidas – que realiza o monitoramento dos direitos previstos na Convenção –, com capacidade mental, que se refere “à aptidão de uma pessoa para tomar decisões”⁴.

A Convenção impõe também que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas, proporcionais e efetivas para prevenir abusos e garantir o respeito aos direitos, à vontade e às preferências das pessoas com deficiência, assim como a isenção de conflito de interesses e de influência indevida (item 4).
A CDPD dispõe, ainda, que os Estados Partes assegurarão às pessoas com deficiência igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, garantindo que não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens (item 5). Em atenção à mudança de paradigma implementada pelo artigo 12 da Convenção e ao modelo social da deficiência⁵ consagrado nesse documento internacional de direitos humanos, a Lei nº 13.146/2016, Lei Brasileira de Inclusão – LBI, promoveu várias modificações no que tange à teoria das incapacidades.


No artigo 84 assegura às pessoas com deficiência o exercício da sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas e no artigo 6º afirma que a deficiência não afeta a capacidade civil da pessoa, inclusive em relação a um extenso rol de direitos nunca antes previstos a parte dessa população, como as pessoas com deficiência intelectual e mental. O reconhecimento da plena capacidade civil das pessoas com deficiência⁶ – aliado à garantia do apoio necessário no exercício da sua capacidade – propiciou, em nítido caráter instrumental, a garantia, na legislação pátria, de direitos importantes à participação plena e efetiva dessas pessoas na sociedade, em igualdade de oportunidades com as pessoas sem deficiência, a exemplo do direito ao casamento⁷ e à constituição de união estável; à acessibilidade indispensável à vida independente; à moradia para a vida independente; à privacidade; à participação na vida pública; à prestação de serviços notariais e de registro sem óbices ou condições diferenciadas; à emissão de documentos oficiais (tais como a carteira de identidade, a carteira profissional e o passaporte), independentemente de curatela; ao direito de ser testemunha e de acesso à justiça e, ainda, ao exercício de direitos sexuais e reprodutivos; de direitos políticos; dos direitos de cidadania e de participação social e do direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção.


As aludidas modificações viabilizam, em última análise, a materialização de alguns dos princípios basilares da Convenção: o respeito pela dignidade da pessoa humana, a plena e efetiva participação e inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, a igualdade de oportunidades, a acessibilidade e a não discriminação, a independência e a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, mesmo que com apoio. Tal autonomia propicia às pessoas com deficiência “a conquista do direito humano fundamental de ser ‘moralmente livre’, de poder fazer valer a sua vontade interior, que é um componente ligado à própria dignidade das pessoas” (Figueiredo e Gonzaga, 2018, p. 88). As mudanças realizadas concretizam, ainda, os princípios constitucionais da cidadania, da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

¹ Porque aprovados tais documentos internacionais nos moldes do § 3º do art. 5º da Constituição Federal.

² Conforme o artigo 1 da CDPD, “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.

³ Ante a complexidade do tema e as diferentes percepções acerca das aludidas mudança e repercussões, a pretensão deste artigo limita-se a gerar reflexões e contribuir para a construção de soluções para os muitos impasses em torno da matéria.

⁴ Comentário Geral nº 1 acerca do artigo 12 da Convenção, p. 4, tradução livre.

⁵ O modelo social de deficiência (item 2 do artigo 1 da CDPD) contesta o modelo biomédico da deficiência, segundo o qual há uma relação de causalidade e dependência entre os impedimentos corporais e as desvantagens sociais vivenciadas pelas pessoas com deficiência (DINIZ e SANTOS, 2009).

⁶ Artigo 12 da CDPD e artigos 6º e 84 da LBI.

⁷ O Estatuto modificou consideravelmente o sistema das invalidades do casamento, ao revogar o inciso I do artigo 1.548 do Código Civil – que previa a nulidade do casamento contraído pela pessoa sem “discernimento para os atos da vida civil” – e incluir o § 2o no art. 1.550 para possibilitar, independentemente de autorização do curador, o casamento de pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbil, “expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador”. Além disso, a LBI afastou a possibilidade de anulação do casamento em razão do desconhecimento, anterior ao casamento, de doença mental grave ou de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência (art. 1.557).

Continua…

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